sexta-feira, 24 de abril de 2015

SERGIO MACHADO - um psicanalista que trafegou pelo sagrado

Sergio Machado voava alto e era preciso como uma águia
 
 
A transcrição desta entrevista é uma homenagem ao meu amigo, psiquiatra e psicanalista do Rio de Janeiro, Sérgio Machado, que nos deixou esta semana, na quinta feira, 23 de abril, dia de São Jorge, para fazer juz à sua índole guerreira. No início dos anos dois mil, ele e a mulher Marilda construíram uma belíssima e aconchegante propriedade no alto do Caledônia de onde, durante alguns anos, apreciaram e admiraram junto aos filhos e amigos uma das mais belas vistas de Nova Friburgo. Eles pretendiam fincar raízes na cidade para morar e clinicar. A vida não permitiu. Num fim de semana, Sergio, gentilmente, recebeu meu (então) aluno Max Wolosker , hoje jornalista e colunista para uma simpática conversa sobre suas experiências profissionais e de vida. O que na época era uma atividade acadêmica, hoje se transformou num registro biográfico que me orgulho de publicar em meu blog.
 
Curiosa é sua caminhada ao longo da vida. Nos idos de 1964, Sergio formou-se em Engenharia Mecânica, na UFF, mas somente em 1977, na Faculdade de Medicina da UFRJ), é que concluiu o curso de Medicina. Talvez, estes dois cursos tão opostos em sua essência, sejam uma amostra de sua personalidade irrequieta e aberta. O psiquiatra destaca-se no tratamento de pacientes portadores de síndrome do pânico, depressão e no acompanhamento a portadores de câncer. Mas, aponta como uma de suas atuações mais marcantes, o trabalho realizado junto à mãe de santo Marlicene Figueiredo que redundou na fundação do Instituto São Cipriano, em Campo Grande, no Rio - hoje, uma ONG - que cuida de meninas entre sete e dezessete anos, oriundas de favelas da região de Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, visando tirá-las da prostituição. Além de atendimento básico de saúde, em ginecologia e clínica médica e apoio psicológico, o instituto ministra cursos profissionalizantes e faz com que elas freqüentem a escola com regularidade. Sérgio tem também trabalhos publicados, dentre os quais destacamos “Manejo de situações clínicas difíceis”. Com certeza, as características mais marcantes de Sergio são seu alto astral, que o deixa sempre de bem com a vida; o bom papo; e a visceral ligação com a natureza, que direcionou sua escolha por Nova Friburgo.
 
Sua vida acadêmica começa na Engenharia Mecânica. O que o levou a essa primeira escolha?
Sempre gostei de mecânica, desde menino montava e desmontava carrinhos. Meu avô paterno era engenheiro e meu pai sempre quis ser engenheiro, era seu sonho. Mas em função da guerra de 14, meu avô que trabalhava numa empresa alemã, perdeu dinheiro e meu pai não pôde estudar.  Acabou sendo bancário e morreu bancário. Depois que eu terminei meu processo de análise, concluí que a engenharia que cursei, foi para ele e não para mim. Para você ter uma idéia, no meu descanso dos estudos para o vestibular de engenharia, lia a História da Psiquiatria, de Frans Alexander, com a qual me divertia. Seis anos após a formatura de engenharia, recebi um comunicado do CREA (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura) me informando que estava exercendo a profissão ilegalmente. Isso, porque entreguei o certificado de conclusão da faculdade para o meu pai - que ficou orgulhosíssimo -, mas me esqueci de registrar o diploma!
 
O que o motivou para uma mudança tão radical, da Engenharia para a Medicina?
Acho que sempre tive essa queda pela medicina, apesar de não ter consciência disso. Na realidade, a única consciência que tinha era que estava muito infeliz como engenheiro. Trabalhava muito, era o que hoje chamamos de workaholic. Em 1969, estava numa obra em Santa Catarina, na hoje famosa praia de Garopaba, quando comecei a ter dores de cabeça insuportáveis. Fui transferido para o Rio onde diagnosticaram uma meningite tuberculosa. Tive de ficar um ano e meio parado, sendo que três meses praticamente isolado, para fugir de estímulos sensoriais, principalmente, som e luz. Durante esse longo período, tive tempo para pensar e cheguei à conclusão de que a doença tinha sido uma tentativa de suicídio bem sucedida. O Sérgio Machado que emergiu dessa situação, era uma pessoa completamente diferente que, entre outras coisas, abandonou a engenharia e decidiu ser médico.
Quantos anos você tinha, quando fez Medicina?
Fiz o vestibular com 34 para 35 e terminei a faculdade com 40 anos. Para se ter uma idéia de como o meu objetivo era mesmo a Medicina, estudei três meses e passei em décimo nono lugar na UFRJ. Para Engenharia, tive que fazer quatro vestibulares.
 
O que o levou à psiquiatria e à psicanálise?
Acho que a medicina e a psiquiatria vêm de berço, é como o dom da música. A ligação com a psicanálise começou na época em que larguei a engenharia, pois minha família e meus amigos diziam que eu estava completamente louco e deveria fazer análise. Logo eu que sempre tive muito medo (e continuo tendo), de psicanalistas (risos)! O internato, no sexto ano de medicina, já fiz em psiquiatria, depois cursei dois anos de pós-graduação que me deram o título de especialista. Paralelamente a isso, fiz cinco anos de formação analítica. Só que hoje, faço psicanálise do meu jeito, o que me fez sair da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Na verdade, acho que nem deveria ter sido aceito, pois minha atuação (inclusive receitando medicamentos), não se enquadrava com as diretrizes da sociedade, dirigida para quem gosta da política e da produção teórica psicanalítica. Eu gosto mais de clínica, de doença, tenho uma conduta mais realista, muito diferente da que se procura num analista padrão.
 
Misticismo e Psiquiatria têm algo a ver? Você tem alguma religião, professa alguma crença?
Acho que tem tudo a ver porque tem muito místico doido; e muito psiquiatra místico; e que não sabem. Eu não tenho nenhuma fé religiosa, embora trafegue pelo sagrado.
Como foi seu envolvimento com o Centro São Cipriano, da mãe de santo Marlicene?
Eu tinha um terreno ao lado do centro de umbanda da Marlicene que estava com problemas burocráticos. Um dia fui lá para resolver estas questões e meu empregado sugeriu que eu fosse ao terreiro vizinho para ver se havia envolvimentos espirituais nas dificuldades que enfrentava. Apresentaram-me à Marlicene e ela perguntou se eu era médico, pois atendera uma moça que passava mal e o caso era para médico e não para mãe de santo. Eu a examinei e vi que estava delirando, em franca crise psicótica. Mandei comprar medicamentos injetáveis que, depois de aplicados, me obrigaram a esperar para aguardar o resultado. Quando descobriram que eu era médico, até a psicótica melhorar, fiz sete atendimentos. Marlicene me disse que eu tinha o dom da cura e perguntou se não gostaria de trabalhar lá, como médico. Eu topei e foi assim que tudo começou.
Quer dizer que você é um dos fundadores do atual Instituto São Cipriano?
Sim e tenho muito orgulho de ter começado este trabalho. O início foi curioso, engraçado mesmo. Como não tinha consultório lá, era obrigado a atender no meio do terreiro com um grande altar sincrético ao fundo. Por respeito, tirava os sapatos; por ser médico, andava de branco. Desse modo, entre um médico e um pai de santo, a diferença era muito pequena. Mas no centro, minha palavra passou a ter um peso muito maior que no meu próprio consultório, afinal dava remédio e ainda estava na frente do altar (riso)
 
Como era sua relação com os pacientes no centro da Marlicene?
O mais importante era o diferencial do tempo do atendimento. O paciente esperava muito menos para ser consultado do que num ambulatório público. Além disso, tinha tempo de conversar e contar seus problemas. A consulta não tinha nada de psiquiátrica, psicanalítica ou esotérica, apenas o cara saía dali se sentindo uma pessoa tratada com humanidade. Isso se refletia no tratamento, os medicamentos eram mantidos e, com isso, os sintomas melhoravam.
 
Como era o trabalho no centro São Cipriano?
Começou com atendimento médico e, quando se fazia necessário, encaminhava pacientes para colegas de diversas especialidades. Muita gente que freqüentava o centro, conseguiu tratamento dessa forma, o que seria impossível por conta própria. Aos poucos, levei para lá vários amigos engajados em trabalhos sociais e começamos a estudar um meio de tirar as crianças da rua. Basicamente, as meninas, pois é mais fácil lidar com elas, por serem mais dóceis e cordatas.
 
Como é o entrosamento profissional de um médico com uma mãe de santo? Quem ensina a quem, ou ambos saem ganhando?
Acho que saí lucrando mais do que ela. A Marlicene é uma pessoa fora de série, com uma experiência que não sei de onde ela tira. Aprendi muito com ela que, inclusive, já escreveu livros, discute sobre mecânica quântica, fala sobre filosofia. É impressionante, em qualquer assunto, dialoga com a maior tranqüilidade, apesar de ter cursado apenas o normal. É uma pessoa fantástica e, hoje em dia, uma mãe de santo light. Isto porque o enfoque dela também acabou mudando muito. Por exemplo, ela parou com o sacrifício de animais nos rituais que, atualmente, são feitos apenas com comidas.  Como geralmente faz-se muito mais quantidade do que o necessário, o que sobra é repassado para os asilos, abrigos e orfanatos da região. Na realidade, quem saiu lucrando mesmo foi a população de Campo Grande, pois lá havia carência de tudo e o Instituto São Cipriano veio preencher algumas lacunas e se transformou num centro comunitário com uma grande preocupação social.
Você tem algum caso pitoresco ocorrido no centro São Cipriano?
Lembro especialmente de uma festa de natal que foi tragicômica. Na época, tínhamos 180 crianças e, através de jantares com amigos, arrecadei dinheiro e compramos 400 brinquedos. Aluguei uma roupa de Papai Noel com cajado, saco e tudo e, naquele verão infernal de Campo Grande, me vesti na casa da Marlicene, que era perto do Centro. Quando atravessei a rua, dei de cara com um menino e sua expressão de espanto e felicidade, ao ver Papai Noel em pessoa, ficou gravada em mim até hoje. Mas o fato é que a festa foi um fracasso. Espalhou-se pela região que o bom velhinho ia distribuir presentes no centro e, de repente, apareceram umas mil crianças. Elas invadiram o local e me vi com o cajado na mão gritando: “Saiam seus pestes, fora daqui!”. A coisa foi complicada, pois tivemos de comprar balas e biscoitos para atender à demanda excessiva e eles reclamavam que os amigos tinham ganhado presentes e eles não. Ninguém obedecia, pois eu era um simples Papai Noel bem vestido, cujo código não era o deles. Lá, era um centro espírita, de umbanda, cuja festa maior é Cosme e Damião, o símbolo que eles respeitam e obedecem. Aí eu prometi a mim mesmo não fazer mais festas de natal e sim colaborar com a de Cosme e Damião, que são organizadas do jeito deles, maravilhosas, ordeiras, direitas e bacanas.
 
Você pensa mesmo em se mudar definitivamente para Nova Friburgo?
Se Deus me ajudar, venho. Há trinta anos atrás, tive um sítio em Macaé de Cima, por quase 14 anos. Aquele lugar é um sonho, mas por uma série de circunstâncias, acabei vendendo. Em seguida, tive um outro, em Rio Bonito, perto de Lumiar. Depois comprei uma propriedade em São José do Vale do Rio Preto, onde passei os últimos anos, um lugar também muito bonito, mas que era quente no verão. Friburgo sempre ficou no meu coração. Gosto de mato, de verde, do contato com a natureza, de frio, de acordar cedo e sair para caminhar. Isso tudo é o que não falta por aqui! Tenho um jipe vermelho e ando por esse mato todo. Aqui perto há uma cachoeira e tenho o privilégio de tomar banho, vendo a cidade lá embaixo. Meu sonho é vir morar aqui, definitivamente. Por enquanto, pretendo subir na quinta à noite e descer na segunda à noite. Desse modo, daria para abrir um consultório aqui e manter o do Rio. 
Você como psiquiatra lida muito com a síndrome do pânico? O que é essa síndrome, tão falada atualmente? Seu diagnóstico é difícil?
Hoje em dia, no consultório a grande maioria dos casos é de pânico ou depressão. Se bem que penso que quem abre um jornal hoje e não fica deprimido, ou em pânico, não é normal! Mas, Campo Grande me ensinou muito, pessoas que há 20, 30 anos atrás eram diagnosticadas como portadoras de ansiedade generalizada, hoje seriam enquadradas na síndrome do pânico. Na minha opinião, o que caracteriza o pânico é que ele se manifesta independentemente de qualquer estímulo externo. Por exemplo, quando você perde um ente querido, pode sobrevir uma depressão reativa - que é até esperada. Ou então pode surgir uma depressão fóbica, não reativa - que é um quadro psiquiátrico. No pânico não. O indivíduo está dirigindo o seu carro e, repentinamente, tem um troço - talvez uma descarga violenta de cortisol - que causa taquicardia, falta de ar, medo de perder o controle e de morrer. Ele larga o carro no meio da rua e sai correndo. É atendido num pronto socorro, taquicárdico, mas com pressão arterial normal que melhora com um medicamento benzodiazepínico, relaxante. A partir daí, o cara começa a ficar com medo do medo. Para mim o pânico é isso, você não tem nada prévio e, subitamente, se desencadeia uma situação como essa. Acho que ele está associado a uma condição fóbica e, como toda fobia, a um quadro depressivo subjacente. Portanto, é tratável com antidepressivo.
Já que você falou em depressão, qual a diferença entre depressão e angústia?
Essa é uma pergunta capciosa, porque é difícil diferenciar as duas. Geralmente, a depressão vem acompanhada de pensamentos negativos, o paciente acha que nada vale a pena, nada vai dar certo, que o melhor é morrer mesmo. É um processo mais de alma. A angústia está mais ligada a algo existencial, é mais filosófica. O fato de estarmos vivos hoje, produz angústia.  O governo que temos, a fome na África, a violência no Rio de Janeiro são causas de angústia e não de depressão.
 
No caso do câncer, a própria doença leva à depressão ou ela surge em função do tratamento?
As duas coisas. Já vi portadores de câncer se tornarem mais espertos ao receber a notícia e reagirem de uma forma fantástica. Assim como já presenciei portadores de câncer deprimir gravemente, diante da ameaça real que estão sofrendo. Nesses casos, é preciso ajudá-los a lidar com essa situação. O uso de antidepressivos, desde que venha junto com a psicoterapia, tem um efeito muito bom. Só acredito no antidepressivo, sozinho, nas depressões maiores, endógenas. Acho que não existe uma relação direta entre câncer e depressão. Apesar dos quimioterápicos reduzirem a taxa de serotonina, nem todos os pacientes passam por esse quadro.
Você é casado, tem filhos? Fale um pouco de sua vida familiar.
Tenho cinco filhos, dois do meu primeiro casamento e três com a Marilda. Na verdade, eles são meus enteados, mas como estamos juntos há mais de trinta anos, os considero como meus filhos, também.
 
Você tem algum projeto, além da medicina?
Um projeto que já estou realizando, com a ajuda do jornalista Silvio Ferraz, é escrever minhas histórias, afinal com minha idade, já posso olhar para trás. Só pretendo parar de trabalhar quando morrer, gosto muito do meu consultório. Aliás, outro dia aconteceu um caso engraçado. Tenho um paciente esquizofrênico que é muito boa gente. Ele estava na sala de espera e eu atendia uma freira, levada por outra religiosa, com uma profunda depressão. Quando a consulta terminou e abri a porta, ele viu as duas freiras, de hábito, indo embora. Ele entrou e me perguntou: “Pô Sérgio, será que eu piorei muito? Saíram mesmo duas freiras daqui?” Quando eu confirmei que sim ele indagou: “E freira vai a psiquiatra?”
 
Max Wolosker